Sem estrutura na universidade e na pópria casa, Pedro Michel estuda onde é possível. (Foto: Luana Laboissiere/G1)
O estudante Pedro Michel Platini tem 28 anos e é aluno do segundo
período no curso de matemática da Universidade Federal do Pará, em
Belém.
Porém, ao contrário dos outros acadêmicos, não tem livre acesso a todos
os espaços do campus e ao conhecimento compartilhado pelos professores
durante as aulas de laboratório. Deficiente visual, Michel não consegue
contar com a ajuda do acervo de mais de 80 mil obras da biblioteca
central da instituição para estudar.
O aluno ingressou na
UFPA
pelo sistema de cotas, adotado pela instituição desde 2011. Durante o
processo seletivo, Michel fez as mesmas provas que os demais alunos – a
diferença está no formato: os estudantes com deficiência visual contam
com provas feitas em tamanho ampliado, transcritas em braile ou através
de um programa de computador que transforma texto em áudio.
Porém, após ser aprovado, o aluno enfrenta dificuldade em estudar.
Faltam livros e professores preparados para conduzir as aulas de forma
que ele possa acompanhar os demais colegas. “Eu não participo das aulas
de laboratório em informática, por exemplo, porque não tenho
aproveitamento. Não há nem equipamento, muito menos software adequado. O
professor está até checando uma alternativa, mas enquanto isso, não faz
muito sentido ser ouvinte numa aula em que a parte prática é evidente”,
denuncia.
Universidade deficiente
Para Michel, o primeiro semestre de 2012 foi o mais difícil. Nas duas
avaliações iniciais o aluno contou apenas com o que ouviu em sala de
aula para fazer as provas, o que resultou em duas notas 4,5. Faltando
dois dias para a terceira avaliação ele recebeu material em braile, e
conseguiu uma média 9. Na avaliação final, com tempo para estudar,
terminou o semestre com 9,5.
Professor Márcio Nascimento não poupa críticas
aos colegas de profissão na UFPA.
(Foto: Luana Laboissiere/G1)
“Acredito que a maior dificuldade que esse aluno enfrenta não se
encerra apenas na questão do acesso limitado a material especializado, e
sim em encontrar professores que estejam dispostos a sair da sua zona
de conforto para buscar novas metodologias e promover uma inclusão real
desse e de outros alunos em condição semelhante”, critica Márcio Lima do
Nascimento, professor doutor em Sistemas Dinâmicos, que lecionou para a
turma de Michel no ano passado.
Com quase duas décadas de docência na UFPA, o professor critica a falta
de preparo da universidade para a educação inclusiva. “O caso do Michel
só confirma o despreparo da instituição diante da inclusão de alunos
com as mais variadas deficiências. E, para a nossa surpresa, a maior
resistência não parte dos outros alunos, mas dos professores, que
direcionam suas explicações apenas para aqueles que enxergam. Os
docentes, fundamentais nesse processo, não discutem e não querem
discutir a inclusão”, complementa.
“O próprio Pedro Michel confessou, certa vez, que em algumas aulas, ele
era ignorado, tratado como se não existisse na sala”, revela o
professor Nascimento.
"Universidade não está capacitada", diz diretora
O
estudante universitário percorre os corredores da biblioteca central da
UFPA, que não dispõe de livros didáticos transcritos em braile para
pessoas com deficiência visual. (Foto: Luana Laboissiere/G1)
Na cidade universitária da UFPA circulam 45 mil pessoas todos os dias. O
local passa por um processo de adaptação para acessibilidade que deve
ser concluído ainda em 2013. Além do espaço físico, a instituição também
procura o acesso pedagógico através do Núcleo de Inclusão Social,
criado em 2012 para ajudar universitários com deficiência. Esta mudança,
porém, segue em ritmo mais lento: o espaço ainda funciona em um espaço
provisório, dentro da Pró-Reitoria de Ensino e Graduação (PROEG).
“O trabalho está no início, e por essa razão ainda lidamos com entraves
estruturais e de recursos humanos. Estamos em busca de um espaço físico
próprio, além de contratar pessoal especializado para integrar a equipe
que temos, formada por poucos docentes e técnicos. O resultado efetivo
poderá ser sentido a médio e longo prazo”, explica Lúcia Harada,
diretora de ensino da PROEG e coordenadora do Núcleo.
O próprio Pedro Michel confessou, certa vez, que em algumas aulas, era ignorado, tratado como se não existisse na sala"
Professor Márcio Nascimento
A coordenadora, porém, reconhece as deficiências apontadas por
professores e alunos. “É fato que nós, profissionais da UFPA, sobretudo
professores, não estamos capacitados para nesse momento lidar com a
questão do aprendizado do aluno com deficiência que estuda na
instituição”, afirma. Harada assume ainda que desconhece o número e a
situação dos estudantes com deficiência distribuídos nos 11 campi
localizados nos municípios de
Abaetetuba,
Altamira,
Bragança,
Breves,
Cametá,
Capanema,
Castanhal,
Marabá,
Soure,
Tucuruí e na capital paraense.
Enquanto a instituição estuda medidas para sanar o problema, Michel
convive com as limitações impostas pela universidade que, segundo ele,
são maiores que as do glaucoma que levou à perda total de sua capacidade
visual, em 2009, quando cursava medicina no mesmo campus onde hoje
tenta estudar. “Vir aqui na biblioteca é sempre muito estranho. Uma
euforia que acaba em decepção, sabe? Pegar os livros, grandes, volumosos
e ficar imaginando o que tem dentro... É triste saber que muita coisa
ali eu vou continuar sem conhecer. Pensar que tem um mundo todo à
disposição para os alunos, mas não para os cegos como eu”.
Desafio de ensinar
O que mantém viva a esperança do estudante nas mudanças que podem
ocorrer e tornar sua formatura possível é o incentivo que vem de
professores como Adam Oliveira, ligado ao Instituto de Ciências Exatas e
Naturais (ICEN), que se ofereceu para lecionar geometria espacial a
Michel e sua turma. “É a primeira vez que dou aulas a um cego. Além do
desafio, é uma oportunidade única que vai contribuir para o meu
aperfeiçoamento docente”, revela.
"Ao dar aula para ele, na verdade, quem mais
aprende sou eu", garante o professor Adam Oliveira
(Foto: Luana Laboissiere/G1)
A dedicação do professor de 27 anos o levou a pesquisar metodologias
que pudessem facilitar a compreensão do conteúdo e buscar parcerias como
a da Unidade Técnica José Álvares de Azevedo, administrada pela
Secretaria Estadual de Educação (Seduc), referência em educação para
deficientes visuais na capital paraense.
“Na minha disciplina, a questão visual é muito exigida. Eu falo de
definição de sólidos como prisma, cilindro, paralelepípedo. Para não
ficar só nos desenhos, o que tornaria o assunto de difícil entendimento
para o Michel, eu trago sempre para a realidade da nossa sala de aula,
para que ele possa se situar de maneira concreta sobre o assunto que
está sendo tratado”, detalha o professor “Ao dar aula para ele, na
verdade, quem mais aprende sou eu”, confessa.
Driblando dificuldades
Ao
sair de casa, no bairro da Cabanagem, Pedro Michel enfrenta uma trilha
de obstáculos: palafitas, terreno instável e lixo. (Foto: Luana
Laboissiere/G1)
Michel foi batizado como Platini para homenagear um jogador de futebol
francês, mas a intimidade com o esporte não passa da certidão de
nascimento. “Quando eu era mais criança até tentei jogar bola com os
outros garotos, mas como já não enxergava muito e não tinha nenhuma
intimidade com a ‘redonda’, desisti. Tenho dois pés esquerdos”, brinca.
Para ele, a seleção ideal tem gênios da ciência na escalação: nomes que
vão desde o físico alemão Albert Einstein, passando pelo microbiólogo
Louis Pasteur, o matemático francês Blaise Pascal, e os clássicos gregos
Arquimedes e Pitágoras. Também não podem faltar o físico dinamarquês
Niels Bohr, o químico neozelandês Ernest Rutherford, o cientista tcheco
Gregor Mendel e o matemático italiano Fibonacci.
Nascido em uma família sem recursos, Michel conta que reclamava de
fortes dores de cabeça e nos olhos durante a infância, consequências de
uma elevada pressão intraocular diagnosticada tardiamente e que levou à
perda gradual de sua visão. Por enxergar pouco, procurava sentar-se
sempre na primeira fileira na escola. O hábito se manteve até a
universidade. “Quando eu percebi que já estava muito difícil poder ver,
resolvi levar para as aulas um aparelho de MP4 para gravar as
explicações dos professores e memorizar os assuntos”, conta.
Ágil com o pincel atômico, o estudante faz cálculos
e demonstrações matemáticas.
(Foto: Luana Laboissiere/G1)
Porém, chegar até a universidade é um desafio comparável aos estudos:
Michel mora em uma área de ocupação no bairro da Cabanagem, no limite
entre os municípios de Belém e Ananindeua. Construído em madeira, o
imóvel onde vive em companhia da esposa Rulthany, de 32 anos, e do
vira-latas Beethoven, tem apenas dois cômodos e alguns poucos móveis.
Quando está de folga, o estudante divide seu tempo entre
black metal,
desenhos animados e a cozinha. Para estudar, Michel se senta no sofá e,
quando precisa, vai ao quadro branco posicionado em cima da cama do
casal, para fazer cálculos e demonstrações matemáticas.
Ao sair de casa, ele precisa caminhar sobre uma passarela de tábuas,
evitando buracos, lixo, lama e uma série de desníveis até chegar na rua
principal, onde fica a parada de ônibus. Apesar das quedas e tropeços,
Michel não desanima. “Mesmo com esse problema, tenho sonhos como
qualquer outra pessoa. Já realizei alguns deles: estou investindo em uma
nova carreira, tenho a minha casa própria e uma companheira ótima. Eu
ainda quero ser pai e seguir estudando para entrar no mestrado, depois
no doutorado e no que ainda mais vier”, diz.
O professor Nascimento garante que o sonho é possível. “Ele é um aluno
excelente, com grande potencial de seguir carreira acadêmica, seja na
pesquisa ou na docência. Posso afirmar com tranquilidade que, com base
no conhecimento que tem, já está pronto para lecionar no ensino básico
da matemática. As demais potencialidades, com toda certeza, ele irá
aperfeiçoar ao longo do curso”, acredita o professor, um dos muitos
admiradores que Pedro Michel Platini conquistou na sua trajetória pela
busca do conhecimento.
Em companhia da esposa Rulthany, Platini traça planos para o futuro. (Foto: Luana Laboissiere/G1)